Pandemia: Como (e por que) ela afetou mais as mulheres.
A vida em isolamento afetou de maneira desigual as mulheres — minando postos de trabalho, fazendo muitas conviverem mais tempo com seus agressores e devastando sua saúde mental.
Especialistas analisam as consequências (e possíveis soluções) dessa triste realidade.
Dois mil e vinte seria um bom ano para a costureira Raimunda de Jesus Vieira Feitosa, de 62 anos.
Após pouco mais de duas décadas no ofício, Jesus (como prefere ser chamada) finalmente havia comprado a casa própria em Valparaíso de Goiás (GO).
Era também quando ela completaria dez anos fazendo os figurinos de teatro de uma escola de Brasília.
As encomendas de cerca de 250 peças eram trabalho certo, quase como um emprego, e durante muito tempo garantiram o sustento da família com seis filhos, que ela criou sozinha.
Mas, em março, a pandemia de Covid-19 chegou como uma rasteira e causou um verdadeiro efeito dominó nos planos de Jesus: com a escola fechada, acabou também a garantia de trabalho; e o medo de infecção pelo vírus a fez evitar, pelo menos no início, qualquer tipo de contato com os poucos clientes que precisavam de seus serviços.
“Tudo que guardei, a pandemia veio e levou”, lamenta.
“Foi muito frustrante, porque sempre fui muito ativa. Mas fiquei com medo de sair, de trabalhar, não podia divulgar o que eu fazia, porque se algum cliente quisesse ver, eu não poderia mostrar. Durante minha vida toda, nunca tinha passado por uma situação como agora.”
Histórias como a da costureira se repetem Brasil — e mundo — afora.
Embora os efeitos secundários da Covid-19 tenham sido sentidos pela população como um todo, eles são ainda mais devastadores para as mulheres.
Em abril de 2020, um mês após a declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que o mundo enfrentava uma nova pandemia, a Organização das Nações Unidas (ONU) emitiu um documento já prevendo os impactos para as mulheres e traçando orientações de políticas que poderiam ser adotadas para mitigá-los.
“O ano de 2020, que marca o 25º aniversário da Plataforma de Pequim para Ação, era para ser um divisor de águas na igualdade de gênero. Em vez disso, com a pandemia de Covid-19, até os ganhos limitados conquistados nas últimas décadas estão sob o risco de retrocederem”, diz o texto do documento.
“Em todas as esferas, da saúde à economia, segurança à seguridade social, os impactos da Covid-19 são exacerbados para mulheres e meninas simplesmente por causa de seu sexo.”
São poucos os estudos voltados especificamente para gênero e epidemias, mas o que se observou até hoje é que as mulheres tendem, sim, a sofrer de forma desigual.
“No Brasil, a gente já vive em uma sociedade opressora para as mulheres, e a pandemia fez isso crescer exponencialmente”, analisa a antropóloga Denise Pimenta, pesquisadora do Instituto René Rachou (Fiocruz Minas) e do projeto Gender&Covid-19, um grupo que reúne estudiosos do mundo todo para investigar os impactos da pandemia nas mulheres.
Uma postagem no site do projeto destaca que as brasileiras estão enfrentando diferentes desafios: dificuldades no cuidado com os filhos, pobreza, violência doméstica e distribuição ineficiente de contraceptivos são alguns deles.
O cenário é ainda mais grave levando em conta as desigualdades raciais.
Um levantamento do Instituto Polis feito na cidade de São Paulo revelou que mulheres com a pele preta morreram mais de Covid-19 do que as brancas: a cada 100 mil habitantes, foram 140 mortes de negras contra 85 de brancas.
Essas disparidades se acentuam nos diversos contextos em que a pandemia tem sido implacável para com o sexo feminino.
O mercado de trabalho é um dos principais.
Atividades informais, como serviços de faxina, estética e vendas ambulantes — desempenhadas majoritariamente por mulheres pretas —, foram as mais impactadas pela pandemia, pois tiveram que ser interrompidas completamente, sem possibilidade de alternativas como o trabalho remoto.
“As mulheres se viram de repente sem trabalho e sem renda”, pontua a economista Marilane Teixeira, doutora em desenvolvimento econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora na mesma instituição, no interior paulista.
São poucos os estudos voltados especificamente para gênero e epidemias, mas o que se observou até hoje é que as mulheres tendem, sim, a sofrer de forma desigual.
“No Brasil, a gente já vive em uma sociedade opressora para as mulheres, e a pandemia fez isso crescer exponencialmente”, analisa a antropóloga Denise Pimenta, pesquisadora do Instituto René Rachou (Fiocruz Minas) e do projeto Gender&Covid-19, um grupo que reúne estudiosos do mundo todo para investigar os impactos da pandemia nas mulheres.
Uma postagem no site do projeto destaca que as brasileiras estão enfrentando diferentes desafios: dificuldades no cuidado com os filhos, pobreza, violência doméstica e distribuição ineficiente de contraceptivos são alguns deles.
Um levantamento global feito pela consultoria McKinsey & Company aponta que o risco de demissão de mulheres em razão da pandemia é 1,8 vez maior que o dos homens.
E isso considerando as que estão empregadas no setor formal, o que não é o caso da maioria das trabalhadoras em economias em desenvolvimento.
O relatório da ONU estima que 70% delas estão na informalidade, com escassas proteções contra demissão ou auxílio à saúde e pouco acesso às políticas sociais.
“Desde os anos 1970, 1980, nós vínhamos observando um aumento na participação das mulheres no mercado de trabalho, alcançando uma taxa média de cerca de 55%, ainda inferior à taxa média masculina, de mais de 70%”, relata Teixeira. “Mas, a partir da crise de 2014, houve uma piora nessa participação, não só com aumento na taxa de desemprego, mas também na informalidade e subocupação.”
Sobrecarga não remunerada
Entre as mulheres com cargos formais, a situação em relação aos homens também está longe de ser igualitária — mesmo em países ricos.
Nos Estados Unidos, funcionárias da área acadêmica com filhos perderam 33% de horas de pesquisa, entre maio e julho de 2020, em comparação aos homens que são pais.
Isso segundo uma pesquisa do Bureau Nacional de Pesquisa Econômica, feita com 20 mil detentores de Ph.D. Essas horas foram substituídas por um aumento na carga de trabalhos domésticos e cuidados com as crianças — enquanto elas dedicaram quase três horas diárias para os pequenos, os homens não chegaram a destinar duas horas.
Esses dados vão ao encontro do relatório da ONU, que mostra que as mulheres gastam, em média, 4,1 horas por dia em trabalhos domésticos não remunerados, contra 1,7 hora dos homens.
Se fossem pagas, as contribuições femininas nessas tarefas valeriam US$ 11 trilhões.
As trabalhadoras do setor de tecnologia também sentiram o impacto da sobrecarga dos afazeres domésticos na carreira.
Um relatório da Kaspersky, empresa russa especializada em softwares de segurança para a Internet, publicado em janeiro deste ano, revela que 47% das mulheres consideram que a pandemia pode estar atrasando seu desenvolvimento profissional.
Feito pela Arlington Research, o levantamento ouviu 13 mil respondentes de 19 países, incluindo o Brasil, entre novembro e dezembro de 2020.
Embora quase metade das brasileiras que atuam com tecnologia acredite que o trabalho remoto facilita a igualdade de gênero, um número semelhante afirma que tem tido dificuldade de conciliar o trabalho com a vida familiar.
Os dados da Kaspersky mostram o desequilíbrio na divisão das tarefas: por aqui, a faxina foi responsabilidade de 68% das mulheres, contra 48% dos homens; e a educação domiciliar dos filhos ficou a cargo de 78% das mães, contra 56% dos pais.
Ainda é difícil prever os efeitos que tamanha desigualdade pode ter na economia a longo prazo, mas as perspectivas não são boas.
“Nós temos um contexto sombrio e muito crítico para as mulheres, principalmente no mercado informal, onde muitas ocupações podem até acabar extintas”, diz a pesquisadora da Unicamp.
“Mas a sociedade não pode prescindir do trabalho das mulheres.”
O cenário de regressão na igualdade de gênero devido à pandemia, sem que nada seja feito para tentar revertê-lo, pode impedir o Produto Mundial Bruto de crescer US$ 1 trilhão em 2030, de acordo com a estimativa da McKinsey.
Em contrapartida, agir agora para melhorar as oportunidades entre os sexos acrescentaria US$ 13 trilhões à economia global.
Em fevereiro, a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, reforçou que considera que as 2,5 milhões de mulheres desempregadas no país pela pandemia — contra 1,8 milhão de homens — constituem uma “emergência nacional”.
“Nossa economia não pode se recuperar se as mulheres não puderem participar dela completamente”, declarou Harris, em uma ligação com grupos de defesa de direitos da mulher e legisladores.
Entre as propostas da nova administração norte-americana estão créditos de US$ 3 mil para cada criança da família e um investimento de US$ 40 bilhões em assistência para o cuidado com os filhos.
“Em um ano, a pandemia atrasou décadas do progresso que fizemos coletivamente para trabalhadoras em risco”, disse a vice-presidente.
Violência 24 horas por dia
Não bastassem a sobrecarga e as péssimas perspectivas financeiras, a pandemia escancarou outra dolorosa realidade de milhares de mulheres: a violência.
Em abril de 2020, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, afirmou que a pasta registrou um aumento de 35% nas denúncias de agressões em relação ao mesmo mês de 2019.
“Esse não é um fenômeno da pandemia, ele só se acentuou com ela e se tornou mais complexo pela dificuldade de buscar proteção”, pondera Teixeira.
O levantamento Um Vírus, Duas Guerras, feito por uma parceria entre cinco mídias independentes e divulgado em outubro, identificou que os casos de feminicídio entre março e abril de 2020 aumentaram 5% em relação a 2019 — e os números podem ser ainda maiores se considerada a frequência da subnotificação.
“As delegacias das mulheres podem até ter continuado funcionando 24 horas, mas a mobilidade não. Com os transportes reduzidos, a pandemia agravou até a possibilidade da mulher se deslocar, isso sem falar nos casos em que o agressor controla o telefone e o corpo da mulher”, avalia Teresa Esmeraldo, professora de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
“Se antes já era difícil, no contexto atual nunca se precisou tanto de políticas públicas e sociais para conter a violência contra a mulher”, acrescenta a docente, que também é coordenadora do Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH-UECE).
Uma das maiores preocupações das especialistas consultadas pela reportagem é o efeito que tudo isso vem causando não só no bem-estar físico, mas também no emocional das mulheres.
A pesquisa de abrangência nacional feita com 3 mil pessoas por uma equipe do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo aponta que as mulheres responderam por 40,5% dos sintomas de depressão, 34,9% das manifestações de ansiedade e 37,3% dos indícios de estresse identificados.
E essa não é uma questão só por aqui. Entre 20 de janeiro e 1º de fevereiro deste ano, 39,5% das norte-americanas reportaram sintomas de depressão e ansiedade, segundo o Centro Nacional de Estatísticas em Saúde (NCHS, na sigla em inglês) dos Estados Unidos.
“Temos uma lacuna muito grande na escuta psicológica que deve ser fortalecida. As mulheres em isolamento precisam ter como acessar esses serviços, nem que seja pela internet”, clama a professora da UECE.
Entre as gestantes, a tendência a apresentar sintomas de depressão e ansiedade é ainda maior, conforme demonstram diferentes estudos. Um deles, feito pelo Departamento de Obstetrícia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, constatou a presença de ansiedade moderada ou grave em quase 25% das futuras mamães.
Saúde adiada
Para além da gestação, a saúde sexual e reprodutiva dos “corpos com útero”, como define a ginecologista Fatima Iyetunde Oladejo, do Rio de Janeiro, ficou bastante comprometida.
“Mulheres sexualmente ativas com mais de 25 anos devem fazer exames preventivos todo ano. Se tiverem dois resultados negativos em sequência, podem fazer a cada três anos, mas se tiverem alterações, precisam realizá-los anualmente”, explica a médica.
Só que, devido às restrições impostas pela pandemia, muitas pularam um ano.
“Pacientes com nódulos de mama e lesões de HPV não fizeram acompanhamento, agora é que estão retornando e vamos começar a ter uma ideia melhor das consequências.”
Um levantamento do Instituto de Urologia, Oncologia e Cirurgia Robótica (IUCR), feito com 548 brasileiras com idades entre 18 e 75 anos e diferentes níveis de escolaridade, dá uma ideia dessa realidade.
Divulgado em janeiro, o trabalho revela que apenas 55,7% das entrevistadas passaram por ao menos uma consulta de rotina no ginecologista em 2020.
Talvez isso explique por que as pacientes têm levado tantas queixas aos atendimentos, conforme observou Oladejo.
Alterações no ciclo menstrual, maus hábitos alimentares e a falta de exercícios em razão da rotina mais sedentária durante o isolamento podem desregular índices de colesterol, glicemia e triglicerídeos, além de desencadear processos inflamatórios.
“Parece que a saúde desandou ao longo de 2020”, diz a ginecologista.
Ninguém solta a mão de ninguém
Diante de tantos retrocessos, como minimizar o impacto da pandemia na vida das mulheres?
No relatório de abril de 2020, a ONU apontou algumas das prioridades macro: garantir representação igual para as mulheres em todo o planejamento de resposta à Covid-19; buscar mudanças na economia do cuidado, tanto formal quanto informal; e direcionar os esforços de mitigação dos impactos sociais e econômicos.
“É importante aplicar uma lente de gênero intencional ao desenhar pacotes de estímulo fiscal e de assistência social para que seja alcançada maior igualdade, oportunidades e proteção social”, diz o relatório.
Os especialistas da ONU também indicam ações para casos específicos.
No mercado de trabalho, por exemplo, seria importante ampliar estratégias de ajuda nos cuidados com os filhos em lugares onde escolas e creches estiverem fechadas; manter programas de alimentação escolar, adaptando-os à modalidade de delivery; garantir o acesso a água e higiene para mulheres em situação vulnerável e promover programas de auxílio em dinheiro para aquelas que são chefes de família.
Ao lidar com a violência doméstica, é necessário considerar os abrigos como serviços fundamentais e expandir sua capacidade, inclusive adaptando outros espaços, como hotéis vazios ou as próprias escolas, para acomodá-las.
E para a saúde reprodutiva feminina, a continuidade do acesso aos serviços básicos deveria ser uma das providências.
A realidade brasileira, porém, está longe disso.
“Temos uma crise que se arrasta mais do que deveria por conta da ausência de estratégia e intervenção do governo federal”, considera a pesquisadora da Unicamp, que acrescenta: “Ele é conivente com o confinamento das mulheres como se fosse o lugar natural delas.”
O otimismo está no fato de que, mesmo diante das adversidades, é possível observar que a sociedade civil vem se reorganizando em redes. “Temos visto iniciativas individuais pelo Brasil e muita solidariedade entre as mulheres para que elas saibam que não estão sozinhas”, relata a professora da UECE.
A própria costureira Jesus é exemplo de um desses casos.
Ela é parte de uma rede de mulheres criada pela artista urbana Key Amorim, na região metropolitana de Brasília, que capacita mulheres vulneráveis para o empreendedorismo criativo.
Na pandemia, porém, Amorim precisou dar suporte direto a cerca de 450 famílias, que de uma hora para outra se viram sem nenhum tipo de renda.
A solução da artista foi vender seu trabalho na Internet e reverter os ganhos em cestas básicas.
“A pandemia nos trouxe um aprendizado grande, porque soubemos nos unir. Mas o impacto na saúde mental vai ficar presente por muito tempo”, diz Key.
De fato, o futuro das mulheres permanece uma incógnita sombria.
“A gente está em um luto coletivo, vamos ter uma ‘geração Covid-19’ com perdas na educação, desemprego, aumento na violência, feminicídio.
Tem uma lista, é tão grave que não consigo nem responder [qual o tamanho do impacto] direito”, afirma Pimenta.
“Vai ser preciso viver algumas décadas para ver que sociedade é essa em que nossos filhos terão que viver.”
Diante de tantas incertezas, uma coisa é certa: o sonho de um mundo mais justo para as mulheres está ainda mais distante.
Fonte: https://revistagalileu.globo.com/
Postado por: https://aquitemtrabalho.com.br
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